segunda-feira, 19 de setembro de 2016

OS DOIS TRIBUNAIS

“Pois a Escritura me ensina que Deus instituiu dois tribunais para os seres humanos: um tribunal de justiça para aqueles que ainda estão seguros e orgulhosos e não querem reconhecer nem confessar seu pecado; e um tribunal da graça para as consciências miseráveis e temerosas, que sentem seu pecado e o confessam, ficando aflitas diante do seu juízo e desejando a graça.”

Texto baseado no trecho de um escrito de Martinho Lutero nas Obras Selecionadas volume 5, página 101.

    Estes dois tribunais lembram uma grande avenida de mão única onde caminhamos durante nossa vida, dividida ao meio por uma faixa amarela. No final ela se abre e segue em direções opostas. É preciso caminhar pela justiça para entender a graça e se não passarmos pelo caminho da graça, nossa vida se perde em meio ao legalismo. 
    O tribunal de justiça é instituído para a condenação dos incrédulos, dos que não precisam de Deus e acham que não há pecado ou dos que não possuem escrúpulos e escarnecem das coisas de Deus, têm seus corações petrificados pela arrogância, vivem o momento sem acreditar que possa haver um amanhã. A justiça é também para um outro grande grupo: o dos que ligam o ganho de sua vida eterna às boas ações, ajudam os pobres e necessitados, são honestos, bem intencionados, têm boa conduta e vivem uma vida com ética e moral ilibadas. Respeitam o "sagrado", oferecem sacrifícios, oram todos os dias, possuem uma religião, muitos frequentam uma igreja, mas sequer sabem o significado da palavra Salvação. Quando deitam-se, tentam manter suas consciências tranquilas, mas o vazio que sentem os faz cada vez praticarem mais e mais boas obras. A justiça é para aqueles que vivem sua falsa fé e santidade, irrepreensíveis aos olhos humanos, pessoas que passam suas vidas em estado de absoluta hipocrisia diante de Deus e do próximo. Revestem-se de uma capa de humana perfeição invejável. Instrumentalizam Deus, igualam-se a Ele e orgulham-se de seus feitos.  
    O tribunal da graça é para a salvação, para todo aquele que crê em Cristo, que vive o Evangelho em sua plenitude, mantêm comunhão permanente com Deus. Para aquele que ama seu próximo, tem uma consciência tranquila e a verdadeira fé em Jesus. É para aquele que percebe a dimensão do amor e da misericórdia de Deus, reconhece-se um pecador, sabe que é Cristo, o próprio Deus encarnado quem o reveste da justiça que ser humano nenhum alcança por si só. É para aquele que se arrepende diariamente, pede perdão e tem conhecimento de sua própria miserabilidade e incapacidade diante do juízo de Deus. Mas também é para aquele que tropeça todos os dias, cai frequentemente, levanta-se, sacode a poeira do corpo, enfraquece na esperança e passa a vida ziguezagueando entre uma pista e outra. Também é para o ladrão da cruz, para todo aquele que arrependeu-se no último momento sem ter conhecimento do plano da salvação, para aquele que recebeu o dom da fé verdadeira no último instante. 
    A Escritura também ensina que os dois tribunais foram instituídos para os dois grupos, porque fazemos parte dos dois grupos: Ora recebemos a graça, ora a rejeitamos e passamos para a pista legalista. Somos tão justos quanto pecadores e passamos de um lado para o outro assim como faz o motorista embriagado que perde a lucidez. Muitas vezes nos embriagamos com nossa arrogância e titubeamos entre graça e lei. Quando a consciência (de Cristo) volta, nos dirigimos novamente para o caminho da graça. Somos e seremos assim até nosso último suspiro. Maus por natureza e bons quando Cristo dirige nossas ações. 
    O excesso de justiça nos torna críticos e impiedosos com o próximo e com nós mesmos, esquecemos da misericórdia de Deus e do verdadeiro sentido da cruz. O conhecimento da graça serve para nos deixar confortáveis diante do juízo de Deus ao mesmo tempo que nos torna responsáveis pelo nosso próximo. Ela nos conduz às boas obras como consequência da nossa salvação e passamos a ver a Lei no seu terceiro uso, como regra e manual de vida. Maravilhoso seria se pudéssemos sempre trafegar sobre a faixa amarela, o equilíbrio entre graça e juízo, Lei e Evangelho. Cristo é o equilíbrio.
    Para aquele que, como eu, não cresceu com o conhecimento e o ensino do cristianismo e só o conheceu mais tarde, fica  fácil perceber os dois caminhos: O primeiro, o do desespero, onde tudo depende de mim, uma corrida cega que nunca chega a lugar nenhum. O outro, o da vida, da misericórdia e da esperança. Todavia, se hoje reconheço a graça, foi porque Deus a concedeu. E se a graça é por fé, então só a recebemos se estivermos na fé, fé esta que não está em nós, mas em Cristo. Então, para estarmos no tribunal da graça, dependemos do próprio Jesus, ou seja, da fé que vem dEle, pois no que depender de nós, andamos sempre pelos caminhos da justiça, com uma fé falsa e viciada em boas obras. Para que eu esteja na graça é preciso que Deus me conceda a fé verdadeira no objeto certo, Jesus. 
    Desta forma sigo em frente, tropeçando, caindo e levantando, certa de que, se Deus me concedeu a graça por meio da fé em Jesus, sou mais que vencedora, pois sei que no final do caminho Ele me guiará para o tribunal da graça, onde já fui revestida com o manto da justiça de Cristo. Este consolo é maior do que tudo, pois para quem vivia na escuridão, uma pequena vela acesa é um imenso raio de sol iluminando tudo em frente. É como o cego que, enxergando pela primeira vez, admira cada cor, cada paisagem, cada rosto. Estar sob a graça de Deus é saber que cada dia representa uma luta diferente, mas também um passo a mais rumo à eternidade...